
Não são poucas as pessoas que ao se depararem com o Sanda competitivo pela primeira vez, fazem aquele olhar de que tem algo faltando (ou sobrando) por ali. Conversando com diversas dessas pessoas, ao longo do tempo, acabei identificando que o espanto ocorre por dois motivos básicos, elas esperam encontrar os vôos e os chutes mirabolantes dos filmes de kung fu, e também esperam identificar a aplicação das formas em toda a sua pompa e plasticidade. Como não encontraram esses elementos, pelo menos a olho nu, se frustram! Tal fato não é de se admirar, muito menos de se condenar, considerando que a forma pela qual a grande maioria tem contato com as artes marciais é a via materiais de qualidade histórico-científica bastante duvidosa e de baixa qualidade. Sendo assim, tentarei, obviamente, sem a mínima pretensão de encerrar um tema tão complexo, contribuir com alguma luz sobre essa questão que chamo jocosamente de “boxificação” do kung fu, e também sobre sua esportivização, a partir de dois tópicos: histórico e técnico.

Primeiramente, dentro da questão histórica, é preciso esclarecer que tais fenômenos não são recentes, criados para adequar o Wushu ao MMA ou para concorrer com o Muay Thai, mas é sim efeito de um processo histórico que, segundo o Sifu David Ross, em seu artigo intitulado “Kung Fu and Western Boxing”, começa antes mesmo do primeiro registro escrito sobre Boxe ocidental na China, intitulado “The Technique of western Boxing”, publicado em 1920, em Shangai. O amálgama, de acordo com o autor, começa já nos primeiros contatos do ocidente com a China, durante dinastia Qing (1644-1912). Mais tarde, dando alguns saltos na linha do tempo, durante advento da china nacionalista (1912–1949), temos o início de uma movimentação mais acentuada em direção à esportivização do Sanda. Nesse período, ocorrem em toda a China competições entre centenas de participantes em diversas regiões da China, onde os melhores colocados eram selecionados para assumirem cargos nos institutos de artes marciais locais. Esses institutos tinham como objetivo organizar as artes marciais chinesas, tornando-as patrimônio nacional. Uma das edições mais famosas do evento ocorreu na província de Hangzhou, no ano de 1929, que de acordo com Yosaku, no artigo Masters of IMA, contou com a participação de 240 lutadores. Importante salientar que era possível observar referências do Boxe ocidental em muitos desses lutadores, o que teria gerado protestos por parte de alguns participantes.

Prática de técnicas de combate com luvas, no famoso Instituto de Artes Marciais de Nanjing, China, 1930.
Mais adiante, na década de 40, ocorreriam grandes combates entre lutadores chineses e estrangeiros na cidade de Shangai. Segundo Gigi Oh e Gene Ching, em um desses eventos, mestre Cai Longyun, com apenas 14 anos, ganharia destaque internacional, derrotando um lutador russo nas regras do boxe ocidental, incluindo luvas fechadas e ringue com cordas. Já entre os anos 60-80, temos o desenvolvimento e a fundação da equipe de Sanda de Beijing, pelo mestre Zhang Wenguang, que também foi responsável pelos primeiros estudos e pela organização das regras internacionais de Sanda, com características muito próximas das competições de hoje. Logo em seguida, começam as edições dos Campeonatos Mundiais de Wushu e a consolidação internacional do Sanda como a forma oficial de combate competitivo do Wushu padronizado. Importante salientar que os mestres Cai e Zhang, entre muitos outros que também construíram elos entre o Boxe ocidental e o Kung fu, eram especialistas em estilos tradicionais como Huaquan e Chanquan, alicerces do Wushu nortista contemporâneo. A importância da atuação desses professores transcendeu o tempo, permeando as escolas tradicionais e as estruturas desportivas do Wushu padronizado como um todo. Legados que ainda vivem!

E quanto as aplicações do Taolu dentro da competição de Sanda; elas podem acontecer ou não? Bem, nessa parte vou tomar a liberdade de trazer uma opinião pessoal, embasada nas experiências que vivi ao longo desses mais de 20 anos dentro das artes marciais chinesas. As possibilidades existem, mas devido a todas as transformações sofridas ao longo de séculos, como citado anteriormente, unidas as necessidades e adaptações impostas pelas competições modernas, não são percebidas tão facilmente a olho nu e não acontecem com a frequência que os apreciadores de um bom filme de kung fu e que os praticantes mais tradicionalistas gostariam de ver. Desta forma, sintetizei de maneira bem objetiva algumas considerações que acho importante a respeito das possibilidades de aplicação tradicional dentro da estrutura do Sanda moderno. Existe uma aplicação direta, onde temos um caráter mais externo, que são as técnicas de luta propriamente ditas, podendo ser observadas, principalmente, no contexto das projeções, uma vez que o Taolu é repleto de técnicas de quedas. E existe a aplicação indireta, onde estão inseridas questões como o condicionamento físico e mental, abrangendo desde a melhoria da concentração, até a melhoria da agilidade, criatividade e resistência do lutador. Entretanto, apesar de todas as possibilidades que as formas podem oferecer no processo de preparação interna e externa do atleta, elas parecem, com o passar do tempo, ter ficado restritas aos ambientes tradicionais de ensino, e cada vez menos utilizadas pelos sistemas de graduação modernizados. Isto pode ser observado claramente nos currículos de formação de professores e alunos de diversas instituições ao redor do mundo, onde os programas são desenvolvidos sem a exigência de conhecimentos em técnicas tradicionais como o Taolu.

Mestre Zhang Wenguang (no centro), fundador da equipe de Wushu Sanda de Beijing, com alguns de seus alunos, entre os anos 1979-80. Todos Especialistas em Taolu.
Dado o exposto, podemos concluir que o Sanda como modalidade esportiva evoluiu de tal maneira que o treinamento das formas, apesar de ter o potencial de ser um diferencial no desenvolvimento do atleta, ficou restrito aos professores que optam por utilizá-lo dentro de uma didática particular. Além disso, parece que a alta demanda por atletas treinados especificamente para competições vem influenciando as graduações, as regras e o jogo do Sanda, distanciando o Wushu de suas raízes tradicionais, que devido a um longo tempo de formação, acaba por fugir dos processos dinâmicos e extremamente específicos exigidos em um treinamento esportivo moderno. Sendo assim, para aqueles que apostam em uma futura reunificação do Sanda com seus aspectos técnicos mais clássicos, como vem acontecendo com o Taolu, parece que não deve acontecer tão breve. Pelo contrário, parece se tornar algo cada vez mais distante, levando em conta a especificidade exigida para se chegar a altos patamares do esporte, contrapondo o caráter generalista dos métodos antigos. Porém, apesar da modernização do Sanda ser uma discussão polêmica, com linhas de pensamento e opiniões diversas, não se pode negar que a modalidade é mais uma das infinitas faces do Wushu, que por sua vez carrega na sua essência um histórico e constante transformar-se. Uma arte a ser repensada constantemente, como fizeram os antigos mestres. Sempre fora da zona de conforto.

Excelente material esse, parabéns fiz uma ótima leitura gostei mesmo.
Otimo artigo! Uma das coisas que percebo e lamento no atual “Boxe chines” e a ausencia dos socos com punho em pe, os socos reverso e giratorio com o dorso da mao (muito comum no karate kyokushin tambem), os varios socos em angulos nao ortodoxos no boxe ingles, o uso dos cotovelos (lap sao, pon sao etc), as armadilhas (trapping), o uso de bloqueios, desvios, redirecionamento e controle dos socos, alem das tecnicas de joelhadas, bloqueio de chutes, chutes saltados etc
Sinto saudade do Leitai profissional!
Verdade é muito importante sua importante sua observação, porém os golpes os quais o senhor mencionou fazem parte do arsenal do sanshou! O sanda é uma versão civil e desportiva criado como essa finalidade mesmo ser desportivo e como aplicação prática do wushu! Sendo assim o objetivo são as competições esportivas, as próprias regras já limitam o uso de alguns tipos de técnicas de punho e a adoção de luvas de boxe fora justamente para nivelar e restringir algumas tecnicas e principalmente para tornar possível que diferentes escolas de artes marciais chinesas pudessem lutar entre si! Outro ponto importante é a duração do round : são rounds de 2 minutos por 1 de descanso, isso também limita a gama de golpes, levando o combate para algo mais direto, lembro que em 2 minutos o atleta precisa ser efetivo então socos, chutes e projeções devem ser precisos, por exemplos ao iniciar uma projeção a partir do clinch o atleta tem 2 segundos para aplicar a queda sendo tolerado até por alguns árbitros até 3 segundos! Ou seja é muito rápido! Por fim destaco que o sanda não é o sanshou! Este hoje continua sendo praticado apenas pelas forças militares e policiais o sanda fora e é o esporte de combate desenvolvido para exportação e permitir que atletas do wushu moderno por todo o mundo pudessem experimentar o combate por exemplo na china até 10 anos atrás não havia uma equipe que se dedicasse apenas ao sanda!Todos os praticantes eram oriundos do taolu! Hoje já existe centros de treinamentos voltados apenas para o sanda com campings para atletas e treinadores estrangeiros eu mesmo estive em Beijing em um desses! O objetivo das autoridades esportivas chinesas com o sanda é que o esporte ( wushu) se torne olímpico e os atletas de wushu para se tornar campeão na disputa teria que competir em mãos livres, armas ( taolu) e combate corpo a corpo( sanda) porém com o a crescente força do sanda eles já estão reestruturando o projeto para que o sanda seja a modalidade olímpica chinesa a integrar os jogos! Sem contar o fato de que qualquer atleta ou artista marcial de qualquer arte marcial pode lutar sanda! Desde que siga o conjunto de regras da modalidade! Em quanto estive na china tive a oportunidade de ver a equipe de taekwondo e de boxe olimpico da universidade de esportes de Beijing participando do torneio de sanda com o intuito de proca de experiências e contribuir para o estudo de técnicas de perna e socos com fito de melhor preparar a equipe daquela universidade que participaria dos jogos nacionais de artes marciais e um evento gigantesco de wushu e principalmente de sanda! Além das províncias chinesas participam e quipes universitárias de países como vietnã, japão, Rússia, Coreias, Irã é uma semana de confrontos com centenas de luta! E sinistro mas muito legal, mas é isso o sanda é um esporte marcial incrível! Mas é isso um esporte! Arte marcial e sanshou mas deixo esse comentário e visão para um outro comentário!